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3 de mar. de 2013

Reflexões Sobre Uma Nova Concepção do Trabalho


O trabalho é fundamental para a inserção do indivíduo na sociedade, podendo ser fonte de realização e de inquietação. É pela realização do trabalho que os indivíduos se ligam às organizações, de onde se destaca sua importância para o estudo de administração, como enfatiza Peter Drucker:
[...] A empresa (ou qualquer outra instituição) tem, na verdade, apenas um recurso: o homem. Ela funciona tornando os recursos humanos produtivos. Só há desempenho através do trabalho. Tornar o trabalho produtivo é, portanto, uma função essencial. Mas, ao mesmo tempo, as instituições da sociedade atual vão se tornando cada vez mais os meios pelos quais os indivíduos buscam seu sustento, encontram seu acesso a um status social, à comunidade e à satisfação e realização pessoal. Tornar o trabalhador realizado e empreendedor é, consequentemente, cada vez mais importante, além de ser um parâmetro do desempenho da instituição. E é cada vez mais uma tarefa da administração. (Drucker, 1997, p. 37)
Dentre os grandes desafios da administração, e da sociedade atual, está a adequação do indivíduo e seu trabalho às novas condições do meio econômico e tecnológico ora verificadas, conforme preocupação de Alvin Toffler:
[...] fui ficando gradualmente estarrecido de ver quão pouco se sabe na verdade sobre a capacidade de adaptação, tanto pelos que provocam e criam grandes mudanças em nossa sociedade, quanto pelos que supostamente nos preparam para lidar com essas mudanças.  Os intelectuais mais competentes falam, com muita coragem, de "educar para mudar", ou "preparar para o futuro". Mas não sabemos virtualmente nada sobre como fazê-lo. No meio ambiente em mais rápida mutação a que o homem já se viu exposto, continuamos em lamentável estado de ignorância sobre como o bicho-homem lida com seus problemas. (Toffler, 19998, p. 14)
Em complemento, cabe ainda indagar sobre os fatores motivacionais relacionados ao trabalho, como exposto por Drucker:
Douglas McGregor sistematizou a forma como os homens gerenciam o trabalho nas organizações em duas concepções, às quais chamou de teoria X e Y. Por teoria X ele define a administração do trabalho tradicional, que pressupõe a necessidade de se vigiar as pessoas em suas funções, caso contrário, pelo fato de serem desinteressadas, descomprometidas, desleixadas, elas fatalmente acabarão evitando trabalhar, adotando formas de passar o tempo com o menor esforço. Assim, para trabalhar, as pessoas precisam ser vigiadas e ter estímulos diretos, como por exemplo, prêmios por produção ou pagamento com base em resultados pré-estabelecidos. Historicamente, esta é a forma arraigada de lidar com o trabalho. Já por teoria Y ele define a abordagem contrária, onde se pressupõe que os homens trazem em si uma necessidade de contribuição, de realização pessoal, de sentirem-se úteis para o grupo, para a sociedade, que gostam de ter responsabilidade.  Em suma, a teoria X pressupõe que as pessoas são imaturas e a teoria Y que elas querem ser adultas. (Drucker, 1997, p. 308)
Com a progressiva mudança no contexto do trabalho, a abordagem sugerida pela teoria X encontra-se em decaimento. O capitalismo não mais precisa supostamente expropriar o trabalhador do campo ou o artesão de suas ferramentas e técnicas para poder dispor de uma mão-de-obra operária (se é que tal entendimento realmente faz sentido, como discutido em outro texto - ver aqui).
O avanço tecnológico pressupõe indivíduos mais preparados intelectualmente, com maior qualificação e disposição para aprendizado, de modo que a maior parte do trabalho repetitivo pode ser feito, com vantagens, por máquinas.
Assim, não é de surpreender que entre psicólogos e administradores predomine a abordagem calcada na teoria Y. De fato, autores que tratam de temas como liderança, gerenciamento de equipes, ambiente de trabalho, etc., que têm por base os fundamentos da teoria Y, vêm prosperando continuamente no estudo de administração, mesmo que novas abordagens preservem os mesmos fundamentos de modelos anteriores.
De qualquer maneira, em relação à concepção da teoria X, a abordagem da teoria Y ou pelo menos sua aceitabilidade como pressuposto necessário a um melhor ambiente organizacional, constitui uma evolução nas relações de trabalho. Porém, entre uma e outra abordagem, a forma de lidar com o indivíduo quase sempre continua a mesma, apenas muda-se o enfoque.
Anteriormente o controle físico do indivíduo na linha de produção, através do estudo e cronometragem de movimentos e contagem do número de peças produzidas, era o caminho para assegurar a produtividade do trabalho. Atualmente, em virtude das novas necessidades tecnológicas e gerenciais, a compreensão dos fatores psicológicos torna-se necessária como forma de assegurar, de estimular, a disposição para o trabalho em busca de maior produtividade. Ou seja, pressupõe-se, a partir da teoria Y, uma forma de controle mais completa sobre o indivíduo, não se tratando mais meramente de seu tempo de trabalho para execução de uma atividade pré-estabelecida, mas de criar no pensamento do mesmo os fatores (a motivação) que o levarão a crer em sua necessidade de contribuir para a organização da forma mais produtiva possível.
A maioria – senão todos – dos autores contemporâneos sobre psicologia industrial professa sua fidelidade à Teoria Y. Gostam de usar termos como “autorealização”, “criatividade” e “homem completo”. Mas, na realidade, eles estão é falando e escrevendo sobre controle através de manipulação psicológica. E são levados a isso por seus próprios pressupostos básicos, que são precisamente os da Teoria X: as pessoas são fracas, doentes e incapazes de cuidar de si mesmas. Vivem atormentadas por medos, angústias, neuroses e inibições. No fundo, não querem realizar nada, mas sim fracassar. Querem, portanto, ser controladas – não por medo da fome, nem devido aos incentivos das recompensas materiais, mas sim pelo seu medo de alienação psicológica e pelos incentivos da “segurança psicológica". (Drucker, 1997, p. 319)
Devemos então refutar completamente os pressupostos da abordagem conhecida como teoria Y? Não necessariamente, mas são evidentes, nas organizações, sinais de preconceito e determinismo que têm por base os fundamentos da teoria Y. Isso se reflete mais claramente, por exemplo, em questões como a chamada cultura organizacional, no relacionamento entre os indivíduos na organização e na questão da liderança. Nesse sentido, usamos novamente a abordagem de Peter Drucker, que, além do conhecimento teórico, traz consigo a experiência no campo profissional:
Fala-se muito atualmente que gostar das pessoas, ajudá-las a dar-se bem com elas são qualificações de um “administrador”. Mas apenas isso não basta. Em qualquer organização bem sucedida, existe sempre um chefe que não gosta das pessoas, não ajuda ninguém e não se dá bem com indivíduo algum. Frio, desagradável e exigente, esse chefe normalmente ensina e desenvolve mais pessoas do que qualquer outro. Tipos como este frequentemente impõem mais respeito que qualquer chefe simpático. Exigem um desempenho impecável de si mesmos e dos seus subordinados. Estabelecem padrões elevados de conduta, e esperam que estes sejam cumpridos por todos. Levam em conta somente o que está certo, nunca quem está certo. E embora sejam eles próprios normalmente bastante brilhantes, jamais colocam nos outros o brilhantismo intelectual acima da integridade. O administrador que não possuir essas qualidades de caráter – por mais simpático, prestativo ou cordial, e por mais competente e brilhante que possa ser – é uma ameaça e deve ser considerado como “incapaz de ser um Administrador com A maiúsculo”. (Drucker, 1997, p. 71)
Mais que isso, a passagem seguinte questiona o sentido da própria discussão sobre o papel de um líder:
[...] Mesmo o mais poderoso presidente da maior companhia é desconhecido do público. Na realidade, mesmo a maioria dos empregados da casa mal conhecem seu nome e não o reconheceriam se o vissem pessoalmente. Talvez tenha chegado à posição que ocupa inteiramente por mérito próprio e por ter mostrado uma atuação excelente. Mas ele deve sua autoridade e prestígio totalmente à sua instituição. Todos conhecem a GE, a Companhia Telefônica, a Mitsubishi, a Siemens e a Unilever. Mas quem dirige estas grandes companhias – ou quem dirige a University of California, a École Polytechnique e o Guy’s Hospital de Londres – é do interesse direto apenas do grupo administrativo destas instituições.
Logo, não faz o menor sentido falarmos em administradores como líderes. Eles são “membros do grupo de liderança”. E este grupo ocupa, de fato, uma posição de destaque, proeminência e autoridade. Consequentemente, tem responsabilidade. (Drucker, 1997, p. 399)
Fica entendido que a maneira de compreender a administração das empresas e o papel do trabalho hoje está impregnada de falsos juízos de valor. O ambiente de transformação que atravessamos, onde mesmo o papel de muitas profissões está sendo definitivamente contestado, bem como a atuação das organizações, torna os impactos de uma ou outra concepção menos definidos. Isso permite que já se desenvolva, muitas vezes a partir dos próprios fundamentos da teoria Y, uma nova abordagem à relação entre organizações, indivíduos e trabalho. Começa a ser percebido que não é o convencimento psicológico, a persuasão, ou a liderança, que estarão por trás do almejado incremento da produtividade do trabalho que tem por base a qualificação intelectual (o trabalho do conhecimento), mas sim uma nova postura calcada no desenvolvimento da criatividade, do livre pensar, de uma concepção de pensamento sem as mesmas restrições impostas pelos parâmetros organizacionais.       
Esta é uma filosofia herética hoje em dia, quando tantas companhias acreditam que o melhor empregado é aquele que vive, bebe, come e dorme o emprego e a empresa. Na experiência concreta, aquelas pessoas sem vida própria fora do emprego não são, de fato, pessoas bem sucedidas, nem mesmo sob o ponto de vista da companhia. Já observei um número excessivo deste tipo de pessoas que sobem muito feito um foguete, por não terem outro interesse senão o emprego; por outro lado, elas também caem feito a vara queimada do rojão. O indivíduo que prestará a maior contribuição à empresa é o indivíduo maduro – e não existe amadurecimento se não houver vida própria e interesses fora do trabalho. Algumas de nossas grandes companhias estão começando a compreender isso. O fato de muitas delas incentivarem seus funcionários a terem “interesses fora da firma” ou a desenvolverem algum “hobby” como preparação para a aposentadoria é o primeiro sinal de uma atitude mais inteligente. Mas o seu próprio interesse como empregado, totalmente desvinculado do auto-interesse do empregador, exige que você desenvolva um campo de interesse fora do trabalho. Isto o tornará mais feliz, mais eficaz, aumentará sua resistência contra os reveses e desastres que acontecem a todos; e o transformará num empregado mais eficaz, mais bem sucedido e mais amadurecido. (Drucker, 1997, p. 334)
Estaria, então, o ser humano acostumado ao frenesi cotidiano, aos horários de turnos de trabalho, à ideologia egocentrista e materialista, preparado a encarar o trabalho por outro enfoque e mesmo a considerar o não-trabalho como uma atividade igualmente realizadora e importante em sua formação pessoal, profissional, ao seu papel social? Provavelmente não, nem mesmo as organizações e a sociedade, ainda. Mas, começam a ser viabilizados os meios para que o homem se livre da dependência do fator fixo de produção, da adequação de suas habilidades às necessidades de operacionalidade técnica de um trabalho, e que possa usar a tecnologia, de forma interativa, como elemento para seu desenvolvimento pessoal, na relação com o trabalho e a sociedade. Isso pelo menos enquanto não surgirem máquinas capazes de substituir o cérebro humano.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
DRUCKER, Peter. Fator Humano e Desempenho. 3. ed. São Paulo: Pioneira, 1997.
TOFFLER, Alvin. O Choque do Futuro. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

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