Tenho verificado, em alguns entendimentos e na
prática, a interpretação equivocada do Código de Defesa do Consumidor (CDC) ao
se afirmar que o comerciante só é responsável, em caso de problema no produto
comercializado, de forma subsidiária, depois do fabricante. Entendo que essa
visão é absurda, pelos motivos expostos a seguir.
Em primeiro lugar, é importante distinguir
"vício de produto" de "defeito de produto", pois na
legislação consumerista esses conceitos são diferentes do que adotamos no
cotidiano, causando equívocos:
Quando se fala em VÍCIO DE PRODUTO diz-se respeito a
um problema inerente ao produto ou serviço. Trata-se de falha ou inadequação no
produto que lhe diminui o valor ou funcionalidade, ou seja, é algo referente à
sua qualidade. Nesse caso, a responsabilidade do comerciante é solidária,
conforme artigos 3°, 7° e 18 do Código de Defesa do Consumidor (sendo esse,
inclusive, o entendimento reiterado dos tribunais).
Vejamos que o art. 18 do CDC indica que os
"fornecedores" têm responsabilidade solidária pelos vícios dos
produtos:
Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não
duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou
quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam
ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade,
com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem
publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o
consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
Mas quem seriam esses "fornecedores"? A
resposta está no art. 3° do CDC. Observa-se que esse conceito de fornecedor é
bem amplo, não se tratando apenas do fabricante, mas incluindo aquele que
distribui ou comercializa o produto (ou seja, o comerciante é um fornecedor
também, como não poderia deixar de ser):
Art. 3° Fornecedor
é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou
estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de
produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização
de produtos ou prestação
de serviços.
Por fim, o art. 7°, em seu parágrafo único, reitera a
solidariedade em caso de prejuízo ao consumidor:
Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros
decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja
signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas
autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios
gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.
Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos
responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas
normas de consumo.
Claro está, portanto, que quando se fala em vício de
produto não resta a menor dúvida que o comerciante é solidariamente
responsável. Nem poderia ser de outro modo, afinal é o comerciante que está em
contato mais próximo com o consumidor final. Como não poderia ser responsável
pelo que vende? Assim não fosse, estaria o comerciante habilitado para,
impunemente, empurrar qualquer mercadoria para o consumidor, até mesmo danificada,
podendo entregar produtos com especificações diferentes do pedido do
consumidor. Isso não seria justo, nem ético, nem lógico. Provavelmente a
confusão venha realmente do significado da expressão "vício de
produto", que não é utilizada na prática, onde apenas se fala em
"defeito".
Nesse sentido, é importante destacar que quando o CDC
se refere a DEFEITO DE PRODUTO trata-se de algo complementar à existência do
vício, algo que vem a ocasionar situação que se refere à segurança do
consumidor. Refere-se a fato do produto, à existência de um vício acrescido de
dano ao consumidor, dano esse que pode ser material, moral ou mesmo estético. É
nesse caso que a responsabilidade do comerciante é subsidiária ou substituta.
Consideremos os artigos 12 e 13 do CDC a respeito:
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou
estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de
culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos
decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas,
manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
(...)
Art. 13. O
comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior, quando:
I - o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não
puderem ser identificados;
II - o produto for fornecido sem identificação clara do seu
fabricante, produtor, construtor ou importador;
III - não conservar adequadamente os produtos perecíveis.
O CDC pode não ter sido claro, mas foi coerente. Em
caso de vício de produto o comerciante é igualitariamente responsável com o fabricante,
já que ele que comercializou o produto com problema, eventualmente até ciente
disso. E essa responsabilidade solidária assume grande importância até mesmo
para que o comerciante procure adquirir produtos de qualidade, ao invés de
empurrar qualquer coisa para o consumidor e ele que se vire com o fabricante em
caso de alguma inadequação.
Porém, se o vício do produto causa um dano ao
consumidor, seja em decorrência de seu uso, seja em virtude de um erro de
fabricação, da inadequação do produto para o fim indicado, por problemas
decorrentes do material utilizado, etc., aí faz todo sentido que o comerciante
não seja solidariamente responsável. Afinal, ele não teria a obrigação de deter
todo o conhecimento técnico e de projeto dos produtos que comercializa, tendo
que confiar na reputação dos fabricantes. Além disso, normalmente os casos de
defeito não decorrem de dolo, de má-fé, mas de mera culpa. Porém, não seria
justo o consumidor assumir esse risco. É por isso que, na ausência de
identificação do fabricante culpado, é o comerciante que deve responder perante
o consumidor prejudicado em caso de defeito de produto.
Portanto, podemos dizer que o CDC gradua a
responsabilidade do comerciante, mas não o exime de reparar prejuízo causado ao
consumidor.
Infelizmente, não é incomum verificar lojistas que
empurram a responsabilidade por qualquer problema ao fabricante, devendo o
consumidor se virar junto ao mesmo. Já passei por situação assim, quando
comprei um cartucho que não funcionou, em um grande supermercado. Ao voltar
para trocar o produto, fui surpreendido com a informação que deveria ligar para
o fabricante! Como assim? Eu não comprei diretamente do fabricante. Seria muito
mais fácil o supermercado trocar o produto e devolver o cartucho com problema
para o fabricante - por que eu tinha que fazer o trabalho deles?
O pior é que até mesmo no Procon eu já verifiquei
esse entendimento equivocado, afirmando-se que o comerciante, em qualquer
situação relacionada a produto, teria apenas responsabilidade subsidiária...
Pelo visto, até no Procon falta entendimento sobre a diferença entre produto
com vício e com defeito, além de maior compreensão do texto do Código de Defesa
do Consumidor.
Mesmo se a responsabilidade do comerciante não fosse
solidária nos casos de vício de produto, seria lamentável o fato de lojas que
empurram para o consumidor resolver com o fabricante eventual problema
relacionado às mercadorias que eles mesmos revenderam. Trata-se de um grande
desrespeito àquele que, por um motivo ou outro, escolheu adquirir o produto em
seu estabelecimento. Por acaso acreditam esses lojistas que a venda se resume a
faturar o produto? Não percebem que o bom atendimento também significa
resolução eficaz dos problemas quando eles aparecem? E que quem presta um bom
serviço conquista a fidelidade do cliente para outras compras?
Nem deveria ser necessário uma lei dizendo que o
comerciante é responsável. O bom comerciante deveria já assumir isso como
natural. É claro, porém, que o comércio vem apresentando muita concentração nos
últimos anos, o que enseja o risco do atendimento ser nivelado por baixo,
tornando pertinente a existência de legislação que exija um atendimento
decente. É por isso, e para deixar claro os conceitos que hoje são confusos,
que o CDC carece de reforma, de atualização.
E, por fim, outro problema que se verifica com esse
entendimento limitado, sobre responsabilidade apenas subsidiária do
comerciante, seria a questão da nota fiscal. Ora, o comerciante vende o produto
e entrega a nota fiscal ao consumidor. Se o produto tem problema depois, como
pode querer que o fabricante entregue um novo produto na casa do consumidor e
pegue de volta o produto com problema? Vai entregar mercadoria sem nota fiscal?
Pegar o produto de volta sem uma nota fiscal de devolução? Pelo visto, existem
comerciantes empurrando o ônus do negócio não só para o consumidor, mas também
para o fabricante. Isso é falta de ética. E de profissionalismo.