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30 de nov. de 2015

O Cade e o Embuste do Direito da Concorrência

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é a poderosa estrutura governamental responsável, no Brasil, por assegurar a livre concorrência, agindo no sentido de reprimir "o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros", conforme §4º do art. 173 da Constituição Federal.


Dentre tais atribuições, está o Cade naturalmente incumbido de inibir o conluio empresarial para regulação de preços. Afinal, como destaca Carvalho (2013):
O cartel é tido como uma conduta praticada por particulares que se reúnem com o intuito de sustar a livre concorrência ou restringi-la e embaraçar a liberdade de escolha do consumidor, ocasionando um atraso no setor cartelizado, uma vez que não há concorrentes e a vontade de inovar torna-se cada vez mais imprópria, já que a presença de um mercado consumidor efetivo e presente garante os lucros desses empresários.
E o próprio Cade nos adverte dos efeitos perniciosos dos cartéis:
O poder de um cartel de limitar artificialmente a concorrência traz prejuízos também à inovação, por impedir que outros concorrentes aprimorem seus processos produtivos e lancem novos e melhores produtos no mercado. Isso resulta em perda de bem-estar do consumidor e, no longo prazo, perda da competitividade da economia como um todo. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2002), os cartéis geram um sobrepreço estimado entre 10 e 20% comparado ao preço em um mercado competitivo, causando perdas anuais de centenas de bilhões de reais aos consumidores. (Cade, 2009)
Mas será isso verdade?
Considero que a análise econômica baseada no equilíbrio, que fundamenta a teoria econômica tradicional e o direito concorrencial, não expressa a realidade, não identifica corretamente as forças de mercado. Entendo com mais adequadas as análises que consideram a dinâmica da mudança, a busca de oportunidades de negócio, a "destruição criadora" (como apontado por Joseph Schumpeter) e o "processo de mercado" (como apontado por Isarel Kirzner, entre outros autores). Não obstante, não é preciso se aprofundar na teoria econômica. Bastam os seguintes questionamentos:
Se o cartel é formado por um grupo de empresas para aumentar preços, devemos intuir que os preços mais altos atrairiam novos concorrentes. Ora, a atuação da concorrência naturalmente levaria os preços a cair. O efeito de um cartel seria, assim, momentâneo - desde que fosse assegurada a atuação da concorrência.
Qual seria, então, o fundamento do Cade ao declarar "o poder de um cartel de limitar artificialmente a concorrência"? O cartel teria poder de polícia? De coação? Impediria o acesso ao mercado pelo poder da violência? Se for o caso, podemos nos valer do direito criminal, não haveria necessidade de toda a estrutura administrativa do Cade.
Mas o Cade vai além e diz que um cartel "traz prejuízos também à inovação, por impedir que outros concorrentes aprimorem seus processos produtivos e lancem novos e melhores produtos no mercado"? Como um cartel faria isso? Mesmo se tivesse o controle total sobre um determinado mercado, como poderia impedir que uma empresa, de fora desse mercado, inovasse, lançasse um produto substituto, um novo processo tecnológico etc.?
Na atuação investigativa de cartéis, destaca-se a realização de acordos de leniência, que seriam uma espécie de delação premiada (Araújo, 2013, apud Carvalho, 2011).
Porém, na junção dos elementos que caracterizariam um cartel, uma das principais questões diz respeito à demarcação do chamado "mercado relevante". Tal conceito diz respeito à delimitação de um conjunto, de um limite de mercado, no qual será considerado se determinada operação teria implicações contrárias à chamada "defesa da concorrência".
O conceito é considerado pelo Cade da seguinte forma:
O mercado relevante é a unidade de análise para avaliação do poder de mercado. Define a fronteira da concorrência entre as firmas. A definição de mercado relevante leva em consideração duas dimensões: a dimensão produto e a dimensão geográfica. A idéia por trás desse conceito é definir um espaço em que não seja possível a substituição do produto por outro, seja em razão do produto não ter substitutos, seja porque não é possível obtê-lo.
Assim, um mercado relevante é definido com sendo um produto ou grupo de produtos e uma área geográfica em que tal(is) produto(s) é (são) produzido(s) ou vendido(s), de forma que uma firma monopolista poderia impor um pequeno, mas significativo e não-transitório aumento de preços, sem que com isso os consumidores migrassem para o consumo de outro produto ou o comprassem em outra região. Esse é chamado teste do monopolista hipotético e o mercado relevante é definido como sendo o menor mercado possível em que tal critério é satisfeito. (Cade, 2007)
Além da determinação do "mercado relevante", cabe considerar que a lei 12.529/11, em seu art. 36, traz um considerável rol de práticas que seriam atentatórias à livre concorrência.
Não obstante a indicação do que seriam práticas caracterizadoras de infração à ordem econômica, o art. 36 deixa claro que a responsabilização dos agentes se dá "independentemente de culpa". E não é só isso, os supostos atos de infração à ordem econômica devem ser considerados "sob qualquer forma manifestados" e considerados, quanto a seus efeitos, "ainda que não sejam alcançados".
Ou seja, a lei 12.529/11 pode ser considerada uma espécie de "super direito penal do inimigo", já que a responsabilização não se dá apenas pelo dolo, nem mesmo apenas pela culpa, mas "independentemente de culpa" - o que é certamente inconstitucional e, curiosamente, pouco discutido.
Mais ainda, a responsabilização dos agentes, mesmo sem dolo, mesmo sem culpa, deve ser considerada "ainda que não sejam alcançados" os objetivos supostamente pretendidos. O Cade assume, assim, os contornos de uma divisão de "polícia pré-crime", como no filme Minority Report.
O comentário de Pires (2009), realizado antes da lei 12.529/11, ainda se mostra atual e relevante:
(...) A boa doutrina nos ensina que a lei há de estabelecer para o administrado uma conduta negativa (deverá abster-se do ato, tal como "matar alguém") ou positiva (deverá produzir o ato, tal como "votar"). Bizarra é também a previsão de que a infração independa de culpa. Ora, um delito há de ser cometido com dolo ou culpa. Com dolo, se foi cometido propositalmente, ou se o agente conhecia os potenciais efeitos do seu ato e os desprezou ao consumá-lo; com culpa terá agido se o cometeu em virtude de imperícia, imprudência ou negligência.
(...)
Mas então temos um problema à frente: se a pessoa (física ou jurídica) não agiu com negligência, isto é com culpa, então agiu com diligência, a saber: preveniu-se, anteviu e evitou, razoavelmente, a situação que o legislador denomina de "atos de qualquer forma manifestados", o que reduz estes atos, na verdade, a meras situações de fato.
Vejamos agora a expressão "que tenham por objeto ou que possam produzir os seguintes efeitos". A oração "que tenham por objeto" denuncia a vontade do acusado em produzir os efeitos, o que poderia remeter ao caso do dolo, mas a expressão seguinte "ou que possam produzir os seguintes efeitos", de pronto já a revoga, tornando-a irrelevante. Isto significa que o cidadão pode ser indiciado tanto sem "pretender" quanto sem "prever" que os efeitos sejam produzidos. Ainda, coloca os "efeitos" no campo da mera possibilidade, ao estabelecer que os atos "possam" vir a ser produzidos, aqui autorizando CADE a acusar alguém em virtude de uma mera "tese" econômica, e que enfatiza esta disposição com a parte final: "ainda que não sejam alcançados" (...) (Pires, 2009)
Além disso, o §2° do mesmo art. 36 presume a caracterização de posição de mercado a capacidade de controle ou coordenação de 20% do mercado, percentual esse que pode ser desconsiderado pelo Cade conforme seus critérios.
Desse modo, basta uma leitura simples do art. 36 da lei 12.529/11 para percebermos o poder ditatorial atribuído ao Cade. Através desse órgão, o estado assume o poder de total controle da economia.
Basta considerar que o próprio conceito de "mercado relevante", divulgado pelo Cade, é irrelevante frente ao poder legal que lhe é conferido. Bastam revisões ou mesmo pequenas alterações de conceito e não haverá choque com a lei 12.529/11 (veja que o conceito de "mercado relevante" acima entra em contradição com o §2° do art. 36 lei 12.529/11).
Assim, é curioso perceber como toda a linguagem de defesa da concorrência, de combate à concentração econômica, é utilizada com propósitos totalmente distintos. Livre mercado, concorrência, não é controle estatal. Controle estatal é, e sempre será, intervenção. Não importa o linguajar utilizado para escamoteá-la.
Pode parecer estranho ao leitor que um dos mais importantes controles governamentais sobre as competições eficientes e, portanto, concessões de quase-monopólio, são as leis antitruste. Poucas pessoas, economistas ou não, questionaram o princípio das leis antitruste, particularmente agora que constam, há alguns anos, nos códigos legais. Como é verdade para muitas outras medidas, a avaliação das leis antitruste não procedeu de uma análise da natureza ou das consequências necessárias, mas de uma reação superficial quanto aos propósitos anunciados. A crítica principal dessas leis é que 'não foram longe o bastante'. Alguns dos mais incisivos ao proclamar a crença no 'livre mercado' têm sido mais clamorosos em exigir severas leis antitruste e a 'quebra de monopólios'. Mesmo os economistas mais 'direitistas' têm criticado, com cautela, certos procedimentos antitruste, sem ousar atacar o princípio das leis per se. (Rothbard, 2012, p. 80-81)
Diante do exposto, qual a relevância de identificarmos os critérios básicos de análise de práticas restritivas? Pouca ou nenhuma. Mesmo que, em determinada operação, se tome o cuidado de não caracterização das infrações indicadas na lei 12.529/11, não há qualquer segurança jurídica a respeito. A própria lei assegura ao Cade amplo poder discricionário para definir casos relevantes de apreciação.
E, se alguém duvida disso, basta considerar que fusões caracterizadoras de poder de mercado foram aprovadas com restrições que não mudaram a configuração de concentração que supostamente o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência visaria combater (vide casos Ambev e Brasil Foods, por exemplo). Ou basta considerar a clara alteração de parâmetros na análise de fusão de empresas de distribuição de asfalto (Greca Distribuidora, Betunel e Centro Oeste Asfaltos), cujo caso não se enquadrava nos critérios objetivos da lei, restando os subjetivos (Duarte, 2014).
Por fim, a questão não diz respeito a se o Cade utiliza todos os poderes discricionários possibilitados pela lei ou se estabelece critérios justos de análise. O problema é que esse órgão permite ao estado estabelecer amplo controle sobre a economia. Diz-se que se trata de defesa da concorrência. Está claro que, por trás desse linguajar, encontra-se apenas o poder de regulação estatal e não a defesa da livre concorrência.

Referências consultadas:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Lei n° 12.259 de 30 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Cade.  Cartel de Extração de Areia (PA nº 08012.000283/2006-66). Voto do conselheiro-relator Paulo Furquim de Azevedo, 17 dez. 2008. Disponível em: <http://tinyurl.com/ljeoz8e>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Combate a Cartéis e Programa de Leniência. 3° ed., 2009. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/upload/Cartilha%20Leniencia%20SDE_CADE.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Guia Prático do CADE: a defesa da concorrência no Brasil. 3° ed., 2007. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/publicacoes/guia_cade_3d_100108.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2015.

CARVALHO, Erick L. F. A Política Antitruste no Brasil e o Combate a Cartéis à Luz do Novo CADE. Thesis Juris, v. 2, n. 2., 2013. Disponível em: <http://www.revistartj.org.br/ojs/index.php/rtj/article/view/21>. Acesso em: 12 fev. 2015.

DUARTE, Filipe R. A análise de atos de concentração pelo Cade: o controle de operações com fulcro no art. 88º, §7º da lei 12.529/11. Migalhas, 09 dez. 2014. Disponível em: <http://tinyurl.com/ope6ulu>. Acesso em: 12 fev. 2015.

KIRZNER, Israel M. A Irresistível Força da Concorrência de Mercado. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 12 abr. 2013. Disponível em: <http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=1572>. Acesso em: 12 fev. 2015.

PIRES, Klauber Cristofen. A Lei Antitruste e a AMBEV - uma análise sob a norma da razão. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 26 ago. 2009. Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=362>. Acesso em: 12 fev. 2015.

PIRES, Klauber Cristofen. O Estado e os Cartéis - faça o que digo, não o que faço. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 11 mai. 2011. Disponível em: <http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=976>. Acesso em: 12 fev. 2015.

ROTHBARD, Murray N. Governo e Mercado: a economia da intervenção estatal. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2012.